Capítulo 50: desabafo sobre criar em tempos de crise + a importância de ambientar nosso conteúdo
e como Mar Aberto é um exemplo maravilhoso disso.
um desabafo sobre criar em tempos de crise
prefácio
Antes de falar do tema de hoje, acredito ser importante falar do hiato de três semanas da GLit, que mandou seu Capítulo 49 no último 15 de maio, falando da nossa ação solidária Doe para o RS, Ganhe um Livro.
Como cheguei a mencionar nos dois últimos capítulos, nem sempre a gente está pronta para seguir a rotina, a vida e tudo o mais em tempos de crise.
Isso acontece porque, mesmo quando não somos as pessoas afetadas diretamente, a saúde mental pode sim sofrer à distância.
Culpa e ansiedade por sua vida seguir o ritmo habitual são frequentes, porque parece uma trapaça, um desrespeito com quem está sofrendo. E, no meio disso, a vida continua insistente, acontecendo e acontecendo.
É claro que nada disso me equipara a quem está no RS, foi afetado e vai lidar com as consequências de toda catástrofe, que fique claro.
Um dos posts mais esclarecedores que li sobre o tema foi esse a seguir, que fala sobre ecoansiedade e ajuda a gente a entender porque, do sossego e segurança da nossa casa, ainda nos abalamos com a catástrofe:
Se quiser ler a reportagem completa, clica aqui.
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a ambientação na criação está para a fotografia no cinema
miolo
Já tem um tempo que me propus um desafio para eu mesma que é: em todo livro de ficção que leio, preciso encontrar elementos, ideias e aprendizados sobre criação de conteúdo.
Sei que a ideia pode soar meio estapafúrdia, mas a proposta tem se mostrado cada vez mais eficaz e interessante.
O desafio me permite praticar não apenas minha criatividade como também minha capacidade de correlacionar, imaginar e criar. Esse único ponto de partida me permite revisitar, contestar, entender e ver novos ângulos sobre tudo que aprendi ao longo dos anos.
E, mais importante, me faz pensar mais no papel da ficção no meu processo de aprendizagem e visão do mundo.
Como Mar Aberto dá uma aula de ambientação criativa
No capítulo de hoje, trouxe uma reflexão importante que surgiu a partir da leitura de Mar Aberto, romance Caleb Azuman Nelson | Editora Morro Branco, que é tanto soco quanto borboletas no estômago.
Se você não conhece o livro, eis a sinopse para te ambientar:
Fruto de uma das principais vozes da literatura britânica da atualidade, o romance de estreia de Caleb Azumah Nelson ecoa uma história de amor que floresce entre as rupturas do mundo e a condição negra contemporânea.
Dois jovens se conhecem em um pub no sudeste de Londres. Ambos são negros e britânicos e receberam bolsas de estudo em colégios particulares, onde lutaram para pertencer. Agora, ele é fotógrafo; ela, dançarina – artistas tentando deixar sua marca em um mundo que ora celebra sua existência, ora a rejeita. De forma terna e cautelosa, apaixonam-se. Mas mesmo pessoas que parecem destinadas a ficar juntas podem ser separadas devido ao medo e à violência.
Uma história de amor lancinante e bela, Mar aberto é também uma visão intensa sobre cor e masculinidade. O romance dá espaço para questionamentos prementes da subjetividade negra: o que é ser um indivíduo quando o mundo enxerga apenas um corpo negro, como ser vulnerável quando apenas a força é respeitada ou mesmo como encontrar segurança no amor ainda que frente à possibilidade de perdê-lo.
A ambientação na criação está para a fotografia no cinema.
Ou, trocando em miúdos, a ambientação que um trabalho criativo lhe entrega é tão importante quanto uma boa fotografia em um filme.
Esse trabalho criativo pode ser um livro, como Mar Aberto, mas também pode ser uma postagem que você faz no Instagram.
Por ambientação falo dos elementos que constroem a história no imaginário do leitor, elementos que podem estar descritos apenas em palavras, mas que, por sua força, forma e boa colocação, extrapolam o simples papel descrito.
No caso de um livro, pode ser a couraça de um dragão ou o perfume de uma mulher. Pode ser o jazz que embalava um encontro ou o entardecer em que algo foi perdido.
Ambientar, no livro, vai te levar para a história, te fazer entender o tom, os sentimentos, a profundidade, as perspectivas, as nuances e as entrelinhas de uma história.
Mar Aberto se destaca na ambientação por dois motivos principais (acredite, seria possível tecer um tcc inteiro sobre ele e não esgotar o tema):
Narrativa que brinca com o conceito de quebra da quarta parede ao utilizar a prosa em segunda pessoa, com o pronome você.
A música é um elemento tão presente na narrativa que chega a ser um personagem da história, contribuindo para a construção da forma, do ritmo e da profundidade trama.
O primeiro elemento, o uso do você a todo tempo na narrativa, já nos é apresentado de cara, no primeiro parágrafo do livro:
“Na noite em que se conheceram, uma noite da qual ambos desdenham por ter sido um episódio muito breve, você puxa seu amigo Samuel de lado. Há vários de vocês no porão desse pub no sudeste de Londres. Uma comemoração de aniversário. Quase todos estão prestes a ficar bêbados, ou alegrinhos, dependendo da preferência."
Esse diferencial da narrativa é como uma impressão digital da história, ela dá um tom mais pessoal, mais direto, que diz olhe, o narrador está falando com você; é você que está lá no pub, é você quem tem um amigo chamado Samuel, é você que desdenha desse episódio muito breve.
Isso funciona de um jeito único na narrativa da Mar Aberto, não só por levar a gente para uma cena, para um sentimento, mas, numa análise afastada do conteúdo da história, porque tem a capacidade de se diferenciar das narrativas as quais os leitores estão habituados.
Nessa mesma ideia, a gente segue para o segundo elemento que salta aos olhos na história de Mar Aberto: a presença da música.
Não se trata aqui de simplesmente mencionar uma música ou uma playlist de inspiração, ou seja, já sai do papel principal que a música se presta em vários livros contemporâneos.
A música está entranhada em Mar Aberto, por suas linhas, cenas e personagens. Ela coexiste com tudo e todos.
Conseguir trazer um elemento com essa força exige esforço, porque pede que se vá além, que entenda o tema, que explore como ela vai funcionar na trama e quais efeitos vai gerar nos personagens e acontecimentos.
Já num olhar afastado da trama, a música é um elemento de conexão com o leitor, um que vai expressar o que muitas vezes não foi descrito pelo personagem, pela cena, pelas palavras.
Assim, a música se torna parte da ambientação da história, como um elemento que não pode ser retirado sem que haja prejuízo, porque é membro do livro, é informação vital, tal qual a narração em segunda pessoa.
E onde é que entra a criação de conteúdo a partir das características de Mar Aberto?
No primeiro ponto, quando cito a narrativa em segunda pessoa, destaco como esse é um dos diferenciais da história. É uma abordagem que sai do padrão sem necessariamente reinventar a roda.
Quando pensamos em diferenciais na nossa criação de conteúdo, muitas vezes nos prendemos tanto à ideia de se destacar e ser diferente, que empacamos.
Assim, o que a narrativa de Mar Aberto nos traz é o fato de que nosso diferencial mora exatamente nos pequenos detalhes.
Dessa forma, a ambientação é o clima que conseguimos imprimir na nossa narrativa cotidiana, independente do seu formato. É sobre a forma com que utilizamos as palavras, o tempo verbal, os emojis e tudo o mais.
O diferencial, o toque pessoal, o que vai despertar o interesse pode estar exatamente no como utilizamos a nossa narrativa para construir o ambiente que desejamos que o outro veja.
E como falamos do que queremos que o outro veja, a gente também poderia simplificar o papel da música como aquilo que desejamos que o outro ouça na nossa ambientação.
Mas, vamos nos lembrar que a música em Mar Aberto não se resume a simples ambientação de elevador.
Aqui, é sobre criar e utilizar elementos (musicais ou não), que reflitam mais do que uma boa melodia, ou seja, que façam sentido na sua entrega, narrativa, história, que carreguem com eles significado. Elementos que se alinhem a tudo isso enquanto também mandam mensagens, às vezes sonoras, às vezes não, para quem te lê.
rodapé
É sempre um prazer escrever para você, fique à vontade para comentar ou responder esse e-mail, GLitter.
E obrigada por ler até o fim, ainda há muito a escrever, por isso, é claro, a gente se lê na próxima quarta, na hora do chá, como sempre. ✨-✨