Capítulo VI: seu livro não paga minha resenha
ou porque livro é instrumento de trabalho e não pagamento
miolo
eu poderia dizer que acordei com o espírito inclinado para a discórdia hoje, mas não é o caso.
esse é meu estado de espírito natural.
mas, se ao ler o título você já revirou os olhos, riu, ou teve qualquer pensamento de revolta com a certeza de que eu não sei do que estou falando, garanto: é provável que você repita esses atos enquanto continua a leitura.
dia desses uma amiga (não citarei o nome para preservar sua identidade. em caso de represálias cibernéticas, serão direcionadas à Retipatia, que é um ser cibernético sem alma e coração).
vou recomeçar porque meu parêntesis fez o começo da frase perder o sentido.
dia desses uma amiga veio me falar como estava incomodada (eu suavizei o sentimento dela), porque uma pessoa ofereceu enviar um e-book para leitura e, em troca, pediu o pacote básico: 258 posts + resenha + unboxing (falando bem do livro, por óbvio).
nesse breve parágrafo eu já consigo levantar vários problemas, que não serão sanados nessa news, mas que adicionarão lenha na fogueira com sucesso:
o modo como é feito o pedido de parceria;
para quem é feito o pedido de parceria;
a falta de conhecimento do que significa parceria;
a falta de entendimento do que a criação de conteúdo implica;
falta de entendimento de que criação de conteúdo pode ser trabalho e não apenas hobby (e hobby também pode ser remunerado);
total ausência de conhecimento do inciso II do artigo 5º da Constituição Federal:
“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”
apesar de eu ter extrema dificuldade em ser sucinta, tentarei ser breve ao abordar esses tópicos.
o modo como é feito o pedido de parceria
juro que um dia vou escrever um Manual de Boas Práticas de Parceria no Nicho Literário, mas creio que, quem é sem noção, não vai querer ler, então meu propósito provavelmente não será alcançado.
eu já recebi pedidos de parceria de todos os jeitos: que já me chamou de outro nome, que não me chamou de nome nenhum, que parecia mais uma intimação da justiça para que eu cumprisse uma demanda. já recebi pedidos fofos e educados. pedidos que me despertaram desejo de leitura e pedidos com livros que não tem absolutamente nada a ver com o meu perfil. pedidos que apelavam para meu lado benevolente e caridoso (mas já te contei que a Retipatia não tem nem alma, nem coração. foi o que as pessoas fizeram com a internet que a corrompeu) e que tinham a certeza de que, se eu cobrasse, é porque sou hipócrita.
por isso, em termos bem sucintos, é bom ir além das mensagens de direct e ver se a pessoa tem outras formas de contato, se ela sinaliza que faz esse tipo de parceria e trabalho. e nunca supor que, porque você está oferecendo, ela vai querer. você não é a última Coca-Cola do deserto (e nem ela, e nem eu).
ter educação, polidez, dar informações básicas sobre a obra, informar qual tipo de trabalho você procura (é parceria por permuta, é pago, é o que, criatura?), são elementos mínimos que devem ser explicitados de cara.
fazer mensagens individualizadas que demonstrem que você sabe qual é o nome da pessoa e o que ela faz naquele perfil também é importante (segui-la na rede é um bônus que faz os olhos brilharem, porque, se o perfil coincide e é bom para o que você procura, por que ele não é bom para você seguir?).
para quem é feito o pedido de parceria
esse tópico é sobre a importância de verificar a coesão e coerência. o livro tem, por exemplo, cunho religioso? é de terror? faz sentido que ele seja oferecido para esse perfil, para essa pessoa? para o público dessa pessoa???
essa pessoa indica que faz esse tipo de serviço, por permuta, pago ou por caridade?
se houver dúvida, não chegue com um testamento, você pode perguntar se e como a pessoa trabalha, como pode ser feito o contato e coisa e tal e tal e coisa.
a falta de conhecimento do que significa parceria
parceria, do latim, seu parceiro tá no esquema?
existe uma grande confusão sobre o que é parceria e o que ela representa no nicho literário.
parceria pode ou não implicar grana, bufunfa rolando no job. mas, de modo geral, no nicho literário, quando falamos em parceria, implica-se falar de uma parceria por permuta.
vamos então dar nomes aos bois:
.parceria por permuta: quando existe uma troca entre as partes, que não será financeira. no nosso nicho, geralmente implica livro de um lado e produção de conteúdo do outro.
. parceria paga: a famosa e tão sonhada publi, em que de um lado existe produção de conteúdo e, do outro, grana grana grana.
independente de se tratar de parceria por permuta ou parceria paga, a base que move esse relacionamento é a c-o-n-t-r-a-p-a-r-t-i-d-a. trocando em miúdos, isso significa que existem obrigações e deveres de ambos os lados. ou seja, de quem oferece e de quem aceita.
essas obrigações pode ser o envio do livro, a produção de um conteúdo, divulgação e etc. mas, dentro disso, existe outro aspecto chave que está implícito na ideia de parceria tanto quanto a contrapartida que é o equilíbrio.
o problema é que a relação costuma ficar mais ou menos assim para apenas um dos lados:
e quando um lado fornece o material de leitura e o outro precisa fazer todo resto, é exatamente assim que a gente fica.
o que não significa que você ou eu ou mais ninguém não deva fazer parcerias por permuta (inclusive, eu tenho parcerias por permuta vigentes). existem relações que são excelentes, que oferecem suporte e que se enquadram no tipo de trabalho que o criador faz.
isso significa que, enviar um e-book ou livro físico por si só não paga as horas de leitura, o trabalho criativo, manual e digital que é empregado para, por exemplo, produzir uma resenha. seja ela com um banner feito no Canva, com uma fotografia ao ar livre ou com um texto enxuto.
o que nos leva a:
a falta de entendimento do que a criação de conteúdo implica + falta de entendimento de que criação de conteúdo pode ser trabalho e não apenas hobby
mesmo que o criador produza como hobby, quando se faz uma parceira, isso implica em um trabalho sim. porque, independentemente de remuneração monetária, parceria é um ato contratual, tarefas precisam ser cumpridas.
tarefas que vão desde o tempo de leitura, ao tempo para criação, escrita, revisão, divulgação, interação e tudo o mais. e mesmo que seja um livro pequeno, que seja “apenas um post”. porque
tempo é dinheiro.
logo, é bom abrir espaço para dizer também que livro enviado em parceria não é presente e nem foi de graça. de graça é o livro que você ganhou no aniversário (de graça pra você, no caso).
nem o livro que você recebeu em parceria que não te obriga a produzir nadinha de nada foi de graça. porque tenho certeza de que você suou muito para ter um trabalho atrativo o suficiente para que essa pessoa/marca/empresa/editora acreditasse que valia a pena te mandar alguma coisa, sob a possibilidade de você produzir ou não.
assim, esse tipo de cultura só serve para perpetuar a ideia equivocada de que nós, recebedores de livros, somos extremamente sortudos por ter a honra de receber o arquivo na conta Kindle ou o livrinho que o carteiro traz.
porque é sobre tudo que eu faço e já fiz, não apenas sobre a promessa do que eu posso ou não vir a fazer.
e é nesse ponto que eu chego no lembrete de que tudo que um criador faz e compartilha nas redes sedimenta seu trabalho, quem ele é, sua identidade e posicionamento no mundo e nos tópicos que trata com seu público. e isso não importa se é alguém com 100 ou 100 mil seguidores.
quando falamos em criação de conteúdo responsável, de quem tem consciência que poder de influência não se resume à números, que seu posicionamento faz parte da sua identidade virtual, falamos do fato de que parceria (paga ou não), também não compra opinião.
por isso, não adianta achar que, porque o livro foi enviado cheio de frufrus, porque o e-book foi “0800”, porque você pagou por esse texto, que, obrigatoriamente, essa pessoa vai amar o que leu.
por isso alinhar bem a parceria antes é tão importante. e isso começa lá na escolha de quem será contatado e de como essa pessoa será abordada.
total ausência de conhecimento do inciso II do artigo 5º da Constituição Federal: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”
esse é um inciso que fala por si só. não adianta ficar #xateado porque fulano ou ciclano não aceitou, porque beltrano não quis apoiar a literatura nacional e fazer de graça o job que paga os boletos.
ninguém é obrigado a propor parceria e muito menos a aceitar.
e é por tudo isso (e mais um pouco) que chego no cerne da questão:
livro é instrumento de trabalho, não é pagamento.
posso dizer que demorei um bocado para entender isso. não aquele entendimento que tá lá no coraçãozim da gente, mas é difícil explicar. é sobre a consciência de que meu trabalho vale mais. não só em termos financeiros, mas de valorização também.
um exemplo prático e simples de que o fornecimento do livro é o fornecimento de instrumento de trabalho é o fato de que, se eu tiro ele da jogada, não há com o quê trabalhar. por isso que resumir a contrapartida de um lado como “fornecimento de livro”, seja físico ou e-book, torna as tarefas desproporcionais. em consequência, a relação de parceria fica desequilibrada e ficamos igual ao Bob Esponja dali de cima.
entrelinha
o lado de quem escreve e, especialmente, de quem escreve de forma independente
para ser justa, algumas das questões que eu levantei aqui são difíceis de entender quando se está do outro lado do tabuleiro.
eu, escritora, dou um duro danado para escrever e colocar o livrim no mundo. na maior parte das vezes tenho que desembolsar uma grana que não se tem certeza de que será recuperada. ou, tampouco, que vou ver em curto período de tempo.
especialmente quando se é escritora independente.
especialmente quando se é escritora independente no Brasil.
dizer que existe grana para investir em divulgação paga está longe de ser a realidade da maior parte das pessoas, eu sei disso. tenho meu e-book lá na Amazon, demorei a vida para me ver como escritora e meu e-book não paga meus boletos (aproveita que o clima de Natal está chegando para conhecer o meu e-book).
parece que é uma conta que não fecha. e, muitas vezes, não fecha mesmo.
a questão é que as dificuldades em alavancar o livro independente nacional não pode ser simplesmente jogada como responsabilidade exclusiva de quem cria. existem fatores econômicos, financeiros, culturais e sociais demais envolvidos pra simplificar esse rolê dessa maneira.
quem cria pode e deve dar espaço para a literatura nacional? para autores contemporâneos não consagrados? sim, é maravilhoso se abrir para esse mercado e toca na questão de responsabilidade de escolha de leitura e em vários outros fatores relevantes.
mas isso não significa que, enquanto criador, a pessoa precisa abrir um espaço gratuito quando ela também precisa pagar boletos.
lembra que em edições anteriores falei que propósito não paga boleto? (e estou falando de modo genérico porque não sei em qual foi) meu propósito de escritora ou de criadora não paga, por si só, meus boletos. e do mesmo jeito que eu tenho que entender isso por ambos os lados, a verdade é que o restante das pessoas também precisa.
por mais que doa admitir, a verdade é que hoje o trabalho do autor, assim como de muitos outros profissionais que precisam das redes sociais para divulgar seu trabalho, não inclui apenas a escrita. precisa saber divulgar, fotografar, vender, criar, engajar, entreter, operar máquinas pesadas como o Canva (😅), despertar desejo e emoção.
eu sei, é difícil, mas a culpa da dificuldade não é de quem cria conteúdo e - pasmem! - cobra por ele. o assunto é bem mais amplo e complexo do que isso.
contracapa
e as parcerias com editoras, onde é que elas entram?
eu falei, falei e falei e parece até que eu odeio o modelo de parcerias por permuta.
mas a verdade é que eu adoro uma endorfina instantânea e passageira. não tem nada melhor do que atender o carteiro e descobrir que são livros, e não boletos.
quando pensamos um pouco pelo lado das editoras precisamos lembrar primeiro que: existem diversas editoras, em termos de tamanho de negócio e também em formas de parceria que nos são propostas.
existem, por exemplo, as que fazem parcerias com contrapartidas determinadas, que geralmente são resenhas e chamo de parcerias fixas. e algumas que fazem os envios que desejam, da forma que desejam e chamo de parcerias esporádicas (eu sei, super criativo).
desde que comecei, já tive parcerias com mais de quinze editoras, com vários formatos de trabalho e, por isso, tem alguns tópicos que vou jogar aqui só para ver o caos imperar. digo, para você refletir:
se você pensar em termos monetários básicos, o envio de um livro feito por uma editora (especialmente se for de médio e grande porte), não equivale ao trabalho de divulgação, leitura e criação que você fará. isso é um fato, não é uma alegação leviana que estou jogando ao vento porque odeio editoras e quero abrir seus olhos;
muito pelo contrário, quero que você entenda que, ainda assim, é possível estabelecer relações mais justas e equânimes. o que ajuda a equilibrar a balança em termos de parceria por permuta com editoras é a forma com que esses livros são ofertados para você e o relacionamento que se estabelece entre parceiros. o que vai incluir pontos como: flexibilidade, confiança, apoio, carinho, sinceridade, volume de demandas e exigências, credibilidade, suporte, compatibilidade, espaço para escuta e debate, e reconhecimento (e sim, esse tipo de parceria existe e eu posso provar);
a escolha entre aceitar uma parceria por permuta com uma editora ou tentar ser aceita numa seleção, tem que partir da sua sinceridade consigo mesma: é só para “ganhar livro”? é para te ajudar a ter material de trabalho? é para ter recebidos para mostrar? é por que você gosta do trabalho da editora? é fã dela? é por que seu trabalho tem a ver com a linha editorial que ela trabalha? é por que todo mundo tem parcerias e você deveria ter também?
às vezes o que a gente precisa é entender de onde vem nossas vontades e desejos para saber se aquilo faz sentido no nosso tempo, espaço, conteúdo e coração.
rodapé
esse e-mail acaba de exceder o tamanho limite do Gmail então é bem provável que você precise clicar em ‘ler mensagem completa’ para chegar aqui. o que mostra que falhei miseravelmente em qualquer tentativa de síntese que eu possa ter almejado quando comecei a escrever esse texto.
acho que falei sobre propósito no Capítulo II, se quiser conferir, é só clicar aqui.
obrigada por ler até o fim, se quiser responder com qualquer pitaco, ficarei feliz em te ler também.